Montesquieu no Jardim


As searas daquele quadro de Van Gogh não haviam sido ceifadas há séculos e as paisagens de Turner apresentavam-se tão nítidas agora como as pinceladas de um quadro maluco de Pollock. Montesquieu ficou pensático… pensativo? Naquele instante as palavras interessavam-lhe pouco, queria ser, acima de tudo, verdadeiro e as palavras pesavam-lhe: eram um fardo e um empecilho. Mas seria aquilo de facto um quadro? Não lhe tinham dito que o jardim de infância lhe daria todas as ferramentas para poder saber distinguir o certo do errado? Subiu as escadas até ao quarto. E afinal era o quarto errado. Eram umas escadas de uma beleza estonteante, uma beleza que só se via em sonhos. Montesquieu lembrou-se de Hegel e talvez do labirinto que fosse a sua cabeça. Pensou que talvez também ele tivesse sido seu colega naquele jardim de infância, deveras muito labiríntico. E depois lembrou-se de Van Gogh: a voz que ninguém ouve só pode ser fruto de um aparelho defeituoso — a orelha. Ora toca e ele arranca-a. A orelha. Ou corta-a. Que era algo de todo surpreendentemente diferente. Um outro tipo de manifestação: o brilho frio mecânico e louco do metal. Dürer continuou pendurado na parede, aparentemente calmo, observando aquilo com bastante ligeireza. Achou piada, devia estar habituado. Montesquieu olhou para a porta e ouviu passos rápidos, assustou-se e fugiu. Era a primeira vez cá fora, no recreio. Não sabia como o mundo se ia comportar agora que não tinha tecto. Os passos correram atrás dele, por entre corredores infinitos. E viu um branco brilho, não o do metal, o da tristeza. Montesquieu era assustadiço. Alguém lhe ensinara que a vontade é-o em si mesma, que o indivíduo só o é quando é livre e nele incorpora o universo… aquele imenso exterior. E faz dele seu no âmbito das suas acções. Aquilo fê-lo sentir-se grande, maior que o maior dos mundos, em comprimento, largura e profundidade. Nunca ouvira palavras tão bonitas. Mas agora e ali ouvia passos atrás de si e gritos chamarem o seu nome que aliás não podia ser outro. Montes-quê? Grostes-quê? Seria grotesco, o pobre do Montesquieu? Era ou não, mas achava que não. Não podia ser, mas objectivamente não podia saber. E naquele momento fez muito esforço para não o ser. Sentia medo. Havia muita luz cá fora. Uma manhã verde e inocente, como ele. Uma manhã fresca, cortante e insinuante. Só ela, ele e os berros outra vez. Onde andariam as palavras milagrosas que o salvariam desta vez? Hegel disse que a liberdade do indivíduo… Não, eles iam embirrar. Iam dizer para ele se calar. Que já era demasiado Hegel. Que esse,... outra vez, por amor de Deus, Não! Estavam fartos. Montesquieu decidiu reagir de forma violenta quando sentiu quatro mãos em cima dele e chegou à conclusão que devia ser mesmo grotesco. Mas submeteu-se de livre vontade. E depois gritou. Não vale a pena perscrutar a vontade da Humanidade, bem alto no meio do jardim do mundo. Mas o mundo de Montesquieu, de qualquer maneira, nunca fizera muito sentido. Deixemo-lo em paz, então, a esse tal que chegou a conhecer o espírito das leis.

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